Pesquisar este blog

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Finados





Encontrei Sueto meio pensativa. Até aí nenhuma novidade pois parece estar o tempo todo assuntando alguma coisa.

- Sueto, por que estás sempre mexendo com a natureza das coisas?
 - Porque queria compreender...
- Tem coisas que talvez não possamos entender.
- O quê, por exemplo?
- A origem do universo... a morte... a vida...
- E o que mais?
- Achas pouco?
- Mas para isto não há explicações?
- Bem, há várias, principalmente de ordem religiosa mas, aparentemente, nenhuma que seja inteiramente convincente.
- Eu queria saber mais sobre a origem das coisas , mas não sei nem quem são meus pais.
- É verdade, já te contei que te encontrei abandonada com dois irmãozinhos, numa estrada ... não tinhas nem os olhos abertos.
-  Sei, um de meus irmãozinhos era o Mandela que foi adotado, o outro era uma gatinha que morreu, nem chegou a ter um nome. É tudo que sei de minha família natural. Posso te fazer uma pergunta?
-Claro...
- O que vais fazer comigo quando eu morrer?
- Como assim?
- Vais me jogar no lixo?
- Claro que não, que bobagem...
- Vais fazer o quê? Cremar-me?
- Sueto, por que estás me perguntando isto? Ah, já sei, porque é Dia de Finados... Sabes que quando eu era menino adorava Dia de Finados porque as rádios tocavam música clássica o dia todo... agora tocam funk.
- Está bem, mas responde à minha pergunta.
- Se vou te cremar? Ora Sueto, nem sei se não vou morrer antes de ti.
- Eu quero ser enterrada.

Neste momento não me contive de ser jocoso.

 - Deitada ou de pé? ... Parece que se adota a forma de pé em alguns cemitérios... por uma questão de espaço... não é engraçado? Bem, engraçado , não, mas curioso.
- Me enterra num caixãozinho de madeira, não me enterra numa caixa de papelão.
- Sueto, que idéia, estás me deixando triste...
- Só quero que saibas que a morte não me assusta, morro tranquila...
- Eu gostaria de poder dizer o mesmo...
- É, eu sei, os humanos não sabem lidar bem com isto... aliás nem gostam de ouvir falar na morte...como se a morte não fizesse parte de seu cotidiano, de sua própria essência...Disfarçam, contam piadas, dão gargalhadas, dançam, fazem festas, perdem a consciência embriagados, fumam um cigarro atrás do outro, até se drogam , roubam , matam, torturam, estupram, fazem sexo selvagemente, mas, nada disto impede que a morte esteja ali sempre presente, sem arredar-se...será que agem assim porque, inconscientemente, se dão conta do absurdo da existência?... Camus escreve sobre isto..... alguns ainda procuram uma explicação religiosa mas esta, na verdade, só leva a uma espécie de conforto espiritual e acaba não passando de uma ilusão  ....
- E isto não é suficiente? E a própria vida não é uma espécie de ilusão?
- Talvez ,mas vem acompanhada de muita mistificação , muitos dogmas
- É verdade ...
- Por isto sou atéia...
- Acho que és agnóstica. Ateu é quem não acredita na existência de Deus, agnóstico é quem duvida.
- E não existe um Deus para os felinos?
- Não, Deus é único, para todos os seres vivos.
- Mas cada religião não tem o seu Deus?
- Sim, tem.
-E então?
- Bem, isto seria muito complexo te explicar agora. Mas gatos não tem Deus .
- Mas no Egito eles próprios eram deuses.
- São crenças antigas, hoje já não se acredita nisto.Sueto, tu és uma gata, não deverias ter estas preocupações. Os felinos vivem apenas atendendo aos seus instintos, vivem apenas o momento, isto lhes é suficiente.
- Mas eu me transformei num ser diferente, sabes disto tão bem quanto eu.
- Sei, acho até que diferente demais....
-- E isto também é um fardo para mim. Há quem zombe , quem diga que sou uma criação tua mas, na realidade, tenho vida própria. O que acontece é que às vezes parece que estou agindo como gata, como felina, noutras como humano, como um ser feminino. Dizer que sou uma criação tua é simplificar o que represento.
--  É uma situação que nem todos entendem muito bem....
-- Mas hoje as pessoas se propõem a entender e superar tantas coisas, a homossexualidade, o racismo, as diferenças, como dizem .. como não podem entender o que eu represento?
- Talvez porque fujas aos estereótipos que sempre estão surgindo, o que parece criativo num dia , no outro já se torna estereótipo. E tu perturbas as pessoas porque elas não sabem, entre outras coisas, exatamente como se dirigir a ti. Deves lembrar da minha amiga de São Paulo que negou-se a continuar conversando contigo. Muito inteligente mas disse que não iria conversar com uma gata..
- Me lembro, muito inteligente exceto pela apologia do cigarro. Lembro também ela ter comentado que seu psiquiatra permitia que ela fumasse nas sessões. Foi quando eu quis saber se ia relatar ao psiquiatra que, por um tempo, tinha conversado comigo.
- Mas isto pode ser entendido como uma demonstração de que ela te atribuía existência própria pois justificou-se, ao negar-se a conversar, referindo-se ao fato de seres uma gata.
- É possível...ao mesmo tempo, no entanto, os humanos parecem que se dispõem a aceitar que animais assumam, na ficção, papéis em que interagem com eles ...
-  Mas, nestes casos, os humanos não são instados a interagir pessoalmente com estes seres dotados de virtudes. Então podem separar as coisas e assim lidar com elas. No teu caso é diferente, tu própria não consegues definir a tua condição, isto é perturbador porque obrigas as pessoas que interagem contigo a ter , também elas, que estarem redefinindo a sua própria.
-- Quer dizer que posso provocar isto?
- Sim, acho que sim
-- E tudo que queria é poder comer o meu patê de atum e pegar sol no telhado. Por falar nisto, ainda tem patê na geladeira?
- Receio que não

Sueto me olhou decepcionada. Com o coração partido ainda tentei remendar

-- Mas tem sol no telhado.... quero dizer, tinha, fui obrigado também a emendar, porque naquele instante o céu começou a ficar encoberto
-- Viste, como queres que confie nos humanos? ainda me disse antes de enrolar-se toda e esconder a cabeça embaixo da cola.
Vou dormir, ainda a ouvi ronronar.

Eu com um movimento afetuoso peguei uma manta e cobri-a para proteger do frio.
Pareceu-me, com este pequeno gesto, que protegia a natureza inteira, os pequenos seres que necessitam ajuda em todo o mundo.
Neste momento, pelo menos neste momento, eu me senti o criador e Sueto a criatura.